Mais uma vez o Governo de Portugal mostrou toda a sua incompetência por não ter procedido à profunda reforma do Estado, nela se incluindo o sistema de Segurança Social. Mas os caminhos percorridos pelo Tribunal Constitucional são muito subjectivos e ditariam tantos acordãos diferentes quão diferente fosse a sua composição: onde é que existe igualdade entre a protecção do emprego, remuneração e pensão públicas e a vulnerabilização do emprego, remuneração e pensão privados, acentuada pela sobredesvalorização do Mercado Interno, pela brutal carga fiscal que se abateu sobre Portugal?
A análise que o Tribunal faz dos indicadores económicos é superficial e não pode sustentar qualquer decisão («
O cenário económico de melhoria da situação
económico-financeira, refletida em vários indicadores e, sobretudo, nas
previsões do Governo contidas no DEO, compõe um quadro de algum alívio, que não
deixará de se repercutir na situação dos trabalhadores pagos por verbas
públicas, podendo entender-se que deva abranger algo mais do que um mecanismo de reversão que deixa em
aberto a possibilidade do nível de redução de redução remuneratória se manter
incólume entre 2016 e 2018. (...)
«10. Uma conclusão
fica clara da leitura destes passos da jurisprudência do Tribunal: foram
inicialmente razões de “absoluta excecionalidade” tidas por muito relevantes,
que conduziram o Tribunal ao entendimento de que as reduções salariais então
apreciadas não ofendiam o princípio da proteção da confiança. Tais razões
radicaram posteriormente na necessidade de respeitar os compromissos
internacionais assumidos pelo Estado português, ao subscrever o PAEF.
O PAEF vigorou entre maio de 2011 e maio de 2014,
projetando ainda os seus efeitos, como se disse, no ano de 2015.
Atingido o ano de 2016, encerrado que foi o PAEF e
finalizado, como se perspetiva, o procedimento de défice excessivo em curso, a
formulação de idêntico juízo, por via da identificação de razões de interesse
público muito relevantes e com peso prevalecente sobre as expetativas de
regresso a um quadro de estabilidade da ordem jurídica, em termos de justificar
a medida no médio prazo, à luz do princípio da proteção da confiança, carece de
outro fundamento. (...)
12.
Independentemente de dúvidas quanto à vinculatividade destas recomendações –
adotadas no âmbito do procedimento por défice excessivo –, a verdade é que elas
não impõem a Portugal medidas concretas e determinadas para controlo da despesa
pública e para redução do défice, antes se limitando a enunciar os objetivos ou
metas, que, esses sim, devem ser obrigatoriamente cumpridos, por força das
normas indubitavelmente vinculativas da União Europeia, quais sejam as de
direito originário e de direito derivado acima citadas (no entanto, algumas medidas
concretas podem resultar das decisões de execução do Conselho no quadro do
PAEF). Dito por outras palavras, a vinculatividade do Direito da União Europeia
neste domínio não abrange os meios que os Estados-membros utilizam para atingir
os objetivos ou metas que lhes são impostos.
Assim sendo, o facto de se admitir que as normas
adotadas e a adotar pelo legislador nacional com vista a prosseguir os
objetivos acima referidos se devem conformar com as prescrições da União
Europeia não tem consequências do ponto de vista da aplicação das normas
constitucionais. Pelo contrário, num sistema constitucional multinível, no qual
interagem várias ordens jurídicas, as normas legislativas internas devem
necessariamente conformar-se com a Constituição [competindo ao Tribunal
Constitucional, de acordo com a CRP, administrar a justiça em matérias
jurídico-constitucionais (cfr. artigo 221.º da CRP)]. Aliás, o próprio direito
da União Europeia estabelece que a União respeita a identidade nacional dos
seus Estados-membros, refletida nas estruturas políticas e constitucionais
fundamentais de cada um deles (cfr. artigo 4.º, n.º 2, do TUE).
Sublinhe-se, por último, que neste domínio não há
sequer divergência entre o Direito da União Europeia e o Direito Constitucional
Português. Efetivamente, os princípios constitucionais da igualdade, da
proporcionalidade e da proteção da confiança, que têm servido de parâmetro ao
Tribunal Constitucional para aferir da constitucionalidade das normas nacionais
relativas a matérias conexas com as que se apreciam nos presentes autos, fazem
parte do núcleo duro do Estado de direito, integrando o património jurídico
comum europeu, a que a União também está vinculada.
13. Aqui chegados e
retomando as ponderações pertinentes à apreciação do programa normativo face ao
princípio da confiança, cabe reconhecer que, no ano de 2015, o cumprimento dos
compromissos a que vimos aludindo pesa, de forma muito relevante, sobre as
opções orçamentais (o que não significa, evidentemente, que o peso desses
compromissos não se faça ainda sentir nos anos subsequentes).
Nas circunstâncias atuais e perante a indeterminação
do quadro normativo, não parece possível encontrar elementos suficientemente
claros para suportar um juízo de inadmissibilidade constitucional, à luz do
princípio da proteção de confiança, de medidas de redução remuneratória, ainda
que contrariando expetativas de um grupo de pessoas repetidamente atingido no
passado.
E, mesmo que tal fosse possível, o interesse público
inerente ao cumprimento dos compromissos internacionais do Estado português
ainda implica, neste período, erosão daquele princípio.
Esta última consideração conduz-nos à apreciação das
normas em causa, agora à luz do princípio da igualdade, igualmente invocado
pelo requerente.
14. Também no que
respeita ao princípio da igualdade, importa recordar brevemente as posições
assumidas pelo Tribunal relativamente às medidas legislativas que,
sucessivamente, foram atingindo os trabalhadores pagos por verbas públicas.
14.1. A urgência
das reduções do défice orçamental explica uma atuação do lado da despesa, mais
eficaz do que uma atuação do lado da receita, pela rapidez dos efeitos
produzidos. (...)
14.2. Aquela
circunstância legitima alguma medida de “sacrifício adicional” dos
trabalhadores que recebem por verbas públicas, sacrifício que não consuma, por
isso, um tratamento desigual arbitrário; na verdade, estes são pagos por verbas
públicas, pelo que apenas a sua remuneração reduz, imediata e automaticamente,
a despesa pública. (...)
14.3. O sacrifício adicional, porém, tem de conter-se
dentro de limites estabelecidos à luz do critério da “igualdade proporcional”,
não podendo ser excessivo quando confrontado com as razões que o justificam. Ou
seja: o Tribunal, por um lado, indaga a razão de ser da diferenciação; por
outro, avalia a medida em que a diferenciação é concretizada. (...)
14.4. A
justificação deste sacrifício adicional encontra-se ainda sujeita a duas outras
condições: (a) a consideração de outras alternativas possíveis de contenção de
custos; e (b) o caráter transitório da imposição do sacrifício. Escreveu-se no
Acórdão n.º 187/2013:
«Não só porque o tratamento diferenciado dos
trabalhadores do setor público não pode continuar a justificar-se através do
caráter mais eficaz das medidas de redução salarial, em detrimento de outras
alternativas possíveis de contenção de custos, como também porque a sua
vinculação ao interesse público não pode servir de fundamento para a imposição
continuada de sacrifícios a esses trabalhadores mediante a redução unilateral
de salários, nem como parâmetro valorativo do princípio da igualdade por
comparação com os trabalhadores do setor privado ou outros titulares de
rendimento.» (...)
O ano de 2015, comporta - já o dissemos - valorações
de sinal contrário. Se, por um lado, culmina uma trajetória de regresso à
normalidade ou, pelo menos, de regresso a um patamar liberto do mesmo nível de
constrangimentos das escolhas orçamentais que marcaram os anos de 2011 a 2014,
não é menos certo que a pendência de um procedimento por défice excessivo, que
se segue a um período de assistência económica e financeira, ainda configura
quadro especialmente exigente, de excecionalidade, capaz de subtrair a
imposição de reduções remuneratórias nesse ano à censura do princípio da
igualdade. Releva, nesse juízo, os termos mais mitigados do sacrifício imposto,
por efeito da estatuição de reduções remuneratórias inferiores em 20% às que
são previstas para o ano de 2014.
17. Já o triénio
seguinte – 2016/2018 – determina outra apreciação.
Desde logo, ao contrário do que ainda se poderá
entender relativamente aos anos de 2014 e 2015, não estamos já perante
intervenção legislativa de índole conjuntural e de resposta a situação de
emergência. Como decorre do DEO, o ano de 2017 é aquele em que se prevê que
seja atingido o objetivo de médio prazo, o que remete as razões em que se
alicerça o programa normativo em apreço, nessa dimensão, para a condição de
opção estratégica, que encontra inscrição num quadro regular de atuação do Estado, ainda que dominado por
exigências de disciplina orçamental e de racionalidade económica. (...)»
ACÓRDÃO
N.º 575/2014
«(...) E não há dúvidas quanto à relevância constitucional
que assume a imperatividade de realização de políticas públicas que assegurem a
disciplina orçamental, tal como esta última é imposta à República, desde logo,
pelo Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e pelo Tratado sobre
Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária, bem como
pelas demais normas de direito externo ao Estado português e de direito interno
que concretizam as obrigações implícitas à referida disciplina. Está em causa,
neste domínio, não apenas o cumprimento leal do dever, constitucionalmente
assumido, de “empenhamento” de Portugal “no reforço da identidade europeia”
(artigo 7.º, n.º 5, da CRP), mas ainda o cumprimento leal do dever que as
gerações presentes assumem perante as gerações futuras, dever esse que se
traduz em impedir a existência de uma dívida pública que, onerando e
pré-determinando as suas escolhas, diminua a capacidade que não podem deixar de
ter essas mesmas gerações de se conduzir nos termos prescritos, desde logo,
pelos artigos 1.º e 2.º da Constituição.
As exigências decorrentes deste último ponto, que diz
respeito ao cumprimento leal do contrato entre gerações que a subsistência da
ordem constitucional portuguesa (como a de qualquer outra) pressupõe, fazem-se
sentir de forma ainda mais premente na necessidade, também invocada na
exposição de motivos da proposta apresentada à Assembleia, de encontrar
soluções para o problema da sustentabilidade do sistema de segurança social,
sobretudo na sua vertente de sistema previdencial.
Na verdade, um modelo jurídico que rigidamente
mantenha, neste domínio, as soluções pensadas pelo Direito definido no passado,
pode traduzir-se num trato injusto entre as gerações atuais de beneficiários do
sistema previdencial e as gerações que compõem, no presente, a população ativa
portuguesa, e que, através das suas “quotizações” e “contribuições”, garantem
na atualidade o financiamento do modelo previdencial tal como ele existe. Numa
circunstância histórica em que constrangimentos de ordem económica (a perda de
receitas desse mesmo sistema, causada pelo aumento do desemprego e pelos fluxos
migratórios) e constrangimentos de ordem demográfica (o aumento de esperança
média de vida e a diminuição da natalidade) determinam o desequilíbrio
financeiro de um sistema que foi concebido, enquanto sistema harmonioso e
justo, num diferente contexto, há que ter em linha de conta que a proteção da
confiança daqueles que modelaram os seus planos de vida em função de um Direito
em certo momento vigente se não pode fazer a qualquer preço. Sobretudo, não
pode deixar de ser contrabalançada com as incertas “expectativas” que, pela
natureza das coisas, detêm as gerações presentes de trabalhadores e
contribuintes em virem mais tarde a beneficiar do mesmo sistema. Tanto bastaria
para que, prima facie, se justificasse que, através da consideração da
sustentabilidade, se exigisse aos atuais pensionistas um acréscimo de esforço
para a manutenção do modelo de solidariedade social do qual beneficiam, modelo
esse que não pode deixar de conter equilíbrios justos no trato entre as
diferentes gerações.
A este argumento, que revela só por si o peso dos
“direitos e interesses constitucionalmente protegidos” que são contrapostos aos
direitos lesados, justificando portanto, na ótica do autor da norma, a sua
afetação, acresce um outro.
Como vimos, não se encontra na disponibilidade do
legislador ordinário determinar se existe ou não existe um “sistema de
segurança social” que proteja os cidadãos na velhice e em outras situações de
“falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o
trabalho”. Como lhe não cabe determinar se incumbe ou não ao Estado organizar e
coordenar esse sistema, enquanto primeiro responsável pelo, e garante último do,
seu funcionamento. Estas decisões não se encontram à disposição do legislador
ordinário porque foram já tomadas pela Constituição no seu artigo 63.º.
Daqui decorre que, perante os desequilíbrios tão
manifestos de um sistema de segurança social que, a manter-se tal como está,
poderá obrigar a República a incumprir as obrigações de disciplina orçamental
que assumiu face aos seus parceiros na União Europeia – o que, por seu turno,
poderá implicar que os interesses e os direitos constitucionalmente protegidos
das gerações futuras sejam sacrificados à satisfação dos direitos e interesses
(também constitucionalmente protegidos) das gerações presentes –, o legislador
ordinário tem, face à Constituição, o poder de modificar o sistema, adequando-o
às presentes exigências históricas. É o que resulta do artigo 63.º da CRP, na
medida em que aí se determina que não poderá deixar de existir entre nós uma
qualquer forma sistémica e pública de organização da segurança e solidariedade
social. (...)»